Dia 11 – de Valência até Múrcia

Iniciamos hoje o último tramo da viagem, chamado a Defesa do Sul. Depois da conquista de Valência, Cid se viu diante da dificuldade de frear o avanço almorávida. De acordo com o Cantar, o primeiro enfrentamento se deu nas Hortas de Valência:

a aquele rei de Sevilha, o recado lhe chegava
de que caíra Valência, que já não a resguardam.
Veio atacá-los com trinta mil armas,
detrás da Horta, deu-se a batalha;
derrotou-os o meu Cid, o da longa barba (vv. 1222-1226).
Mais adiante, o rei Yussuf, do Marrocos, tenta recuperar Valência com um exército de 50 mil homens, mas também é derrotado e morto pelo Campeador, quem ainda se apropria, nesta oportunidade, da espada Tizona que era de seu oponente.
Do ponto de vista histórico, sabe-se que havendo Múrcia como principal frente de oposição, a maior parte das regiões ao sul de Valência se colocou de parte da pressão almorávida. Para o sul, pois, rumamos neste tramo que se nos mostrou bastante difícil, seja pelo cansaço de toda a viagem, seja pelo malogro com nossas tentativas de carimbar os salvo-condutos.
A primeira cidade por que passamos, foi Algemesí (27.968 habitantes, INE 2024), ainda na faixa conurbana do litoral de Valenciano. O monumento que vê abaixo retrata a muixeranga, nome dado em toda a Comunidade Valenciana à tradicional torre humana (como os Castellers, na Catalunha), todo ano celebrado com a Fiesta de la Mare de Déu de la Salut.


Seguimos para Alzira (47.335 habitantes, INE 2024), passando por seus imensos laranjais. Não citada no Cantar, Alzira tem, porém, uma grande importância histórica e vínculo com Rodrigo Díaz. De fundação muçulmana, no século XI chegou a ser independente e estava circundada por importantes muralhas que, para além da defesa às invasões, protegiam a cidade das frequentes cheias do rio Júcar, que a contorna. Jaime I, o Conquistador, que avançou sobre o islã e criou o reino de Valência, tinha certa predileção por Alzira, vindo a falecer nesta cidade.

Játiva, ou Xàtiva em valenciano (30.378 habitantes, INE 2024) foi povoada já pelos ibéricos, dos quais se seguiram os gregos e fenícios, os visigodos e os muçulmanos – quando alcançou seu máximo esplendor, ampliando sua arquitetura defensiva -, até sua conquista por Jaime I no século XIII. O poeta Ibn Hazm no século XII cantou as maravilhas de seu horto e suas águas. Seu vínculo com o Cid histórico mostra a cidade como tributária do Campeador, pagando-lhe, a partir de 1091, a incrível soma de 50 mil dinares anuais – junto com Tortosa e Denia -, no mesmo período em que Valência lhe pagava 12 mil dinares. Em 1093 o gonervador de Játiva firma acordo com o Cid de mútua proteção em caso de ataque almorávida, mas em outubro de 1094, após a vitória de Rodrigo na batalha de Cuarte, quando o sobrinho de Yussuf tentava recuperar Valência, é em Játiva que os derrotados os almorávidas se refugiaram, e, a partir de então, a cidade se torna ponta-de-lança contra Rodrigo.

Até dentro de Játiva foi o encalço (v. 1227)


Porta del Lleó


No Cantar, Játiva é uma das cidades

Mandava seus salteadores que faziam as notambuladas,
chegam a Culera e chegam a Játiva (vv. 1159-1160).
No final de 1086 Cid já estava reconciliado com Afonso VI, quem precisava aliar as forças cristãs contra o avanço almorávida. Estando em Játiva, em novembro de 1088, Rodrigo recebeu o chamado do rei Afonso para reunir suas tropas com as dele em Vilhena, a fim de marcharem juntos em socorro ao Castelo de Aledo, que se encontrava sitiado pelos almorávidas. Cid então decidiu esperar pelo encontro com o monarca em Onteniente, pois ali garantia os víveres necessários a sua mesnada, e mandou mensageiros em busca do exército do rei, mas esse encontro nunca aconteceu. Acusado de traição, Cid sofre seu segundo e mais grave desterro. A partir daí já não responderia a mais nenhum senhor.
Em Onteniente, ou Ontinyent em valenciano, (36.430 habitantes, INE 2024), nada resta de sua história islâmica do século XI, embora a historiografia árabe testemunha haver sido uma vila fortificada de certa importância.


com 71 metros de altura.
Rumando para Bocairente, entramos no Parque Natural da Serra da Mariola, predominantemente de pedra calcária, que integra o sistema montanhoso da Cordilheira Bética. Este trajeto faz parte das chamadas “carreteras singulares” do Camino del Cid, pois as paisagens que este acidente geológico nos proporciona são, para dizer o mínimo, deslumbrantes.




Em Bocairente (4.148 habitantes, INE 2024), como nas anteriores, não tivemos sorte na busca de estabelecimentos que pudesse carimbar nossos salvo-condutos. Po isso, fizemos uma pequena pausa para as crianças brincarem fora da Tessoreca.

Passando por campos de oliveiras, a próxima parada foi Vilhena.



Villena (34.385 habitantes, INE 2024) é onde Cid deveria ter encontrado com as tropas de Afonso VI, mas as decisões individuais e a história movem-se segundo seus caprichos. Assim mesmo, não conseguimos descobrir o Tesouro de Vilhena, uma fascinante descoberta arqueológica com quase 10kg com 59 itens como braceletes, jarros e vasilhas da Idade do Bronze.

Passamos diretamente por Sax (10.172 habitantes, INE 2024) e apenas vislumbramos seu imponente castelo almóada que se ergue sobre um penhasco escarpado.


O mesmo ocorreu em Petrel – Petrer em valenciano – (34.076 habitantes, INE 2024), cujo castelo almóada, datado do século XII, ergue-se aos pés das Sierras del Cid.

Há uma curiosa lenda que conta que quando o Cid passava pela província de Alicante, deteve-se para descansar nos montes hoje chamados de Sierra del Cid. Ali foi emboscado, os muçulmanos por um lado, o precipício por outro. Vendo a clara desvantagem em que se encontrava, Cid lançou-se ao ataque gritando: “Santiago Apóstolo, Socorre-me!”. O eco reverberou nos vales, quando Santiago, montado num cavalo branco, tomou as rédeas da Babieca que saltou com tal força que sobrepassou a serra, deixando suas pegadas numa rocha, que ainda hoje se conhece como “La Patà del Cavall”.
Mudando a nossa sorte, seguimos para Montfort del Cid.


Monforte del Cid (8.967 habitantes, INE 2024) adquire o genitivo do topônimo em razão da serra homônima. Nenhum vínculo direto, porém, com o Cantar ou o Cid histórico. Em qualquer caso, quando tudo parecia perdido com a oficina de turismo fechada – a exemplo do que ocorreu nas anteriores paradas – decidimos entrar no seu casco histórico e buscar a Polícia, um peculiar ponto de sellado nesta cidade.


Destacam-se em Monforte del Cid sua produção vitivinícola e sua tradicional festa de Mouros e Cristãos, em comemoração à Reconquista.



Já acabando o dia, fez-se urgente uma outra dificuldade deste tramo: a ausência de áreas de auto-caravanas. A esta altura, a Tessoreca já pedia um justo descanso e limpeza, mas Orihuela, nosso último destino, tampouco oferece um espaço assim. Sem outras alternativas, seguimos direto para Múrcia – já fora do Camino del Cid. Ali encontramos a maior e mais bem equipada área de auto-caravanas pública entre todas as que frequentamos. Como benefício bônus, fica contígua a um grande centro comercial onde jantamos como merecíamos e onde as crianças puderam se divertir muito, o que mereceu uma memória no diário de viagem.

