Dia 6 – De El Burgo de Osma até Medinaceli

Publicado por Ronald Costa em

Amanhecemos em El Burgos de Osma, que divide seu núcleo urbano com a cidade de Osma, já na província de Sória. Antes de ser uma cidade medieval, as origens de El Burgo de Osma remontam às civilizações celtíberas e ao Império Romano (Uxama), até ser tomada pelos muçulmanos no século VII. Estima-se que seu castelo, de provável origem católica, foi construído entre os séculos X e XI, enquanto suas imponentes muralhas datam do século XV.

Embora não haja registro da passagem de Cid pelo município, atribui-se o impreciso topônimo Alcoceba (v. 2875) a alguma região entre Gormaz e El Burgo de Osma, por onde passou Minaya acompanhando as filhas do Cid até Valência, após a Afronta de Corpes.

Atravessaram Alcoceba, à direita deixam Gormaz.

Aproveitando a passagem, não há como prescindir de sua rica gastronomia. Depois de havermos garantido a nossa Mantequilla de Soria, buscamos um estabelecimento reconhecido para provar o tão tradicional Torrezno acompanhado de café com leite como dejejum.

Seguindo viagem, passamos por Navapalos, com 5 habitantes no senso de 2022 (INE), os quais não tivemos a sorte de encontrar pelas ruas. Desabitada na década de 1980, a cidade encontra-se em processo de repovoamento e de reabilitação de suas edificações.

Banhada pelo rio Douro, paramos para contemplar a maior plantação de macieiras de toda a Europa.

Navapalos conta também com uma atalaia islâmica, destinada à vigilância, e, apesar de sua baixa densidade demográfica, a cidade pode ser considerada um exemplo de conservação de técnicas de construção sustentável, autóctone e bioclimática, com suas edificações em barro, semelhantes ao pau-a-pique.

junto a Navapalos o Douro vai passar,
na Figueira meu Cid foi acampar;
assomam-se gentes de todas as partes. Ali repousou o meu Cid depois de jantar (vv. 401-404)

Passamos por Vildé, com 34 habitantes (INE 2023) e, apesar de encontrar suas tão estreitas ruas desertas, sabíamos que estávamos no caminho certo.

Saindo de Vildé, já tivemos uma impressionante vista panorâmica da ermita românica de San Miguel de Gormaz e da fortaleza islâmica califal de Gormaz; estávamos entrando no pequeno município de Gormaz, com apenas 26 habitantes (INE 2024).

Com nenhum cidadão à vista, nem sequer um estabelecimento aberto para conseguirmos o selo da cidade em nosso salvo-conduto, tivemos, porém, a sorte de encontrar o simpático casal belga Roni e Mia, quem se resolvia bastante bem com seu castelhano. Estavam fazendo o Camino del Cid em bicicleta até Valência.

Depois desse encontro, chegara a nossa vez de subir até a fortaleza, cuja importância histórica merece algum breve comentário.

Construída no século IX e depois ampliada no século seguinte, tinha a finalidade de estabelecer um cinturão de defesa ao avanço cristão, junto com Medinaceli e Atienza. Conta-se que esta fortaleza, de inexpugnável que era, jamais fora conquistada pelas armas, ainda que, em 1059, tenha passado ao domínio cristão (rei Fernando I) por acordos de protetorado quando os reinos taifas já se viam bastante debilitados. Data desta época o surgimento do povoado de Gormaz, extra-muros da fortaleza.

Mortos o rei Fernando I e o rei Sancho II (senhor natural de Rodrigo Diaz), em 1065 e 1072, respectivamente, Afonso VI, irmão de Sancho, torna-se rei de Castela e Leão, assumindo Cid como seu vassalo. Quando, em 1081, chegou a Cid a notícia de um cruel ataque islâmico à população cristã que, naqueles tempos, assentava-se às margens da fortaleza de Gormaz, por conta própria decidiu avançar numa dura represália sobre as terras islâmicas vizinhas, onde hoje é Guadalajara, então pertencentes à taifa de Toledo. Porque isto indispôs Afonso VI com aqueles muçulmanos que estavam sob sua proteção, ato contínuo Rodrigo sofre seu primeiro desterro, em 1081, e passa a servir a taifa de Saragoça, vivendo no castelo de Aljafería, até a obtenção do perdão de Afonso VI em 1087, quando Cid volta a Castela. Em 1089 Afonso VI concede a Rodrigo Díaz o título de Alcalde, ou prefeito, de Gormaz, como retibuição a seus serviços.

Com o perímetro de 1 km de muralhas e um total de 28 torres, esta fortaleza contava com um grande aljibe interno, uma cisterna de águas subterrâneas que garantia a sobrevivência em caso de assédio. Sua visitação é livre e o clima colaborou bastante.

Porta Califal

Aljibe

No Cantar, após a Afronta de Corpes, Félez Muñoz encontra a filhas do Cid, Dona Elvira e Dona Sol, muito feridas e praticamente desnudas. É em San Estevam de Gormaz, sob domínio cristão do conde Diego Téllez, que Muñoz as leva para sua recuperação. Quando Cid soube o que os infantes de Carrion haviam feito com suas filhas, então recém desposadas por eles, envia Alvar Fáñez, Pedro Bermúdez e Martín Antolínez, com mais 200 cavaleiros, para buscá-las.

(…)

A São Estevam se foi Félez Muñoz (v. 2813)

(…)

[Diego Téllez] foi receber Dona Elvira e Dona Sol
e acolheu-as dentro de São Estevam.
Honrou-as ali o mejor que pôde;
Os de São Estevam sempre prudentes são (vv. 2817-2820)

Por esta razão, até hoje, os habitantes de San Esteban de Gomaz são conhecidos como “las buenas gentes de Gormaz”. A caminho dali, a comitiva cidônea pousa uma noite em Gormaz, a que o Cantar se refere como muito forte castelo:

depressa cavalgam, de dia e de noite,
chegaram a Gormaz, um castelo muito forte,
ali pousaram, em verdade, uma noite (vv. 2842-2844)

Saindo de Gormaz, uma linda surpresa tivemos na estrada…

E, a caminho de Valência, a comitiva do Cid com suas filhas também passou por Berlanga de Duero, hoje com 831 habitantes (INE 2024) e declarada vila monumental de conjunto histórico e artístico, com um belíssimo castelo de estilo renascentista datado do século XV, erigido sobre os muros califais de uma fortificação do século X. A fortaleza que Cid conheceu, certamente, era não esta, mas a construção islâmica. Assim como de Gormaz, Cid foi Alcalde também de Berlanga.

Ali encontramos uma das mais simpáticas e belas áreas de autocaravana por que passamos em todo o caminho, com uma belíssima vista do castelo. Infelizmente não podíamos pernoitar ali como fizera a comitiva de Rodrigo Díaz.

Atravessaram Alcoceba, à direita deixam Gormaz,
pelo chamado Vadorrey, ali foram passar,
na casa de Berlanga foram pousar (vv. 2875-2877)

A partir deste ponto, entramos em Terras de Fronteira, o tramo que começa em Atienza (422 habitantes, INE 2024) e segue até Calatayud. Sobre Atienza, diz o Cantar:

Pela esquerda passam Atienza, um penhasco muito fortificado (v. 2691).

Quando os infantes de Carrion, antes da afronta que farão às filhas do Cid, supostamente as levam às terras de Carrion para apresentá-las a suas novas herdades, a fim de evitar um tramo sob poder islâmico, passam ao largo de Atienza. Assim também nós decidimos passar ao largo, pois teríamos que chegar ao próximo destino antes do anoitecer, mas o charme do pueblo não nos permitiu passar desavisados.

Castelo de Atienza. A estrutura está preservada, porém, foi transformada no século XIII, já sob o domínio cristão. Este outeiro fora ocupado por civilizações celtíberas e foi bastião do Império Romano, mas a construção fortificada foi obra muçulmana.

Finalmente, depois de tanta beleza para tão curto dia, chegamos para pernoitar em Medinaceli.


Ronald Costa

Doutor em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (2019) com período sanduíche na Universitat Autònoma de Barcelona. É líder do Grupo de Pesquisa Épica Românica Medieval: Tradução e Performance e membro do GT de Literatura Oral e Popular e do GT de Estudos da Tradução da Anpoll, e da Seção nacional EUA-Canadá da Société Rencesvals, na qual atua como revisor do boletim anual para produções acadêmicas na área de Épica Românica Medieval. É docente efetivo da carreira EBTT no Instituto Federal do Paraná, Campus Astorga.