Dia 7 – De Medinaceli até Teruel

Publicado por Ronald Costa em

Seguimos por Terras de Fronteira. Ao deixar Castela, após seu desterro, Cid busca entrar inadvertido nas terras islâmicas, passando de noite por Atienza, a peña muy fuerte. Necessitando víveres para si e seus homens, Cid toma Henares (Castejón de Henares, 59 habitantes, INE 2024)) e dali passam a subjugar as regiões agrícolas circunvizinhas dos muçulmanos, a fim de garantir sua subsistência. Ao mesmo tempo, Cid envia Álvar Fáñez e duzentos cavaleiros a saquear todo o vale de Jalón. No Camino del Cid, esta incursão do lugar-tenente de Cid é compreendida pelo chamado Ramal Álvar Fáñez, que, infelizmente, não poderíamos seguir.

Pela manhã estivemos em Medinaceli – Medina no Cantar -, um pueblo cujo encanto nos faz esquecer do tempo. Em Medinaceli Rodrigo Díaz venceu e deu morte a um muçulmano em combate singular, conforme narra Historia Roderici. No Cantar, Medina é um posto estratégico desde onde o Cid organiza suas tropas contra as praças entre o rio Jalón e Jiloca.

No alto do vale do rio Jalón, Medinaceli é uma vila pré-romana (Okilis), que foi posteriormente romanizada. Abandonada no século V com as invasões eslavas, e repovoada com a invasão islâmica no século VII, a vila só foi cristinanizada em 1104, por Afonso VI.

Seu espetacular arco triunfal romano de arcada tripla, datado da segunda metade do século I, é único na Península Ibérica. Ostenta 8,10m de altura e 13,20m de largura bem conservados, apesar das inclemências a que está exposto em tal altitude. Ergue-se ali para ser visto desde a via romana que seguia até Caesar Augusta (Saragoça), e é possível que também servisse de entrada a Occilis, então conectado às muralhas que circundavam a vila, das que apenas algumas partes restam; carruagens pelo arco central e ambulantes pelos laterais.

Depois de conquistar Valência, Cid envia Álvar Fáñez a buscar Jimena e suas filhas em San Pedro de Cardeña. No curso da viajem, a comitiva é recebida em Medina, e ali espera reforço da escolta. Depois de desposadas pelos Infantes de Carrión e de sofrer sua Afronta, Dona Elvira e Dona Sol voltam a passar por ali, muito feridas, e novamente a caminho de Valência. Deveriam ser recebidas neste castelo, cujas reminiscências da fortificação islâmica do século IX se reduzem às torres e aos muros exteriores, havendo sido o demais reconstruído no século XV. Hoje, a parte interna do castelo guarda o cemitério da cidade.

Porque à época da composição do Cantar esta região já estava cristianizada, podemos compreender como anacronismo o fato de o compositor incluir Medinaceli como passagem das tropas cristãs do Cid, pois no tempo em que vivia, esta fortaleza era um importante posto avançado islâmico. De qualquer modo, a beleza e a importância história desta cidade condiz com o destaque literário que lhe presta o Cantar. E são os muros da cidade que propõem certas reflexões:

“A Rodrigo Diaz de Vivar el Cid Campeador que imortalizou esta histórica vila de Medinaceli”

Outra explicação bastante plausível para o destaque literário de Medinaceli, seria compreender assertivamente o que afirma Don Ramón Menéndez Pidal, acerca da autoria do Cantar:

“Versos do poema de ‘Mio Cid’ escrito, segundo Menéndez Pidal, por um jogral desta comarca”

Os versos, que se leem na placa, são:

Ide a Medina, o quão rápido podeis,

minha mulher e minhas filhas, com Minaya Álvar Fáñez,

tal como me foi dito, ali as encontrareis;

trazei-mas aqui com grande honradez (vv. 1466-1469)

Na qual chamam Medina, foram pernoitar

e de Medina a Molina no outro dia vão (vv. 2879-2880).

Depois de empenharmos em Medinaceli a maior parte do dia que dispúnhamos para este trecho, seguimos viagem parando – ou tentando parar – em diversos pueblos, sem muito sucesso com os carimbos nos salvo-condutos. Muitas dessas cidades são impraticáveis em autocaravana, em razão de suas ruas tão estreitas. Mesmo na entrada de algumas delas, não se conseguia lugar próprio ou seguro para estacionar.

Assim ocorreu em Daroca, importante praça citada no Cantar e vinculada com o Cid histórico.

Daroca (1.919 habitantes, INE 2024) mostrou-se muito inóspita aos 7,35 m da Tessoreca, por isso, apenas pudemos divisar suas imponentes torres e muralhas. Em tempos do Cid histórico, Daroca chegou a ter três castelos interligados por uma linha de muralhas que se estendia por quase 4 quilômetros. Hoje são observáveis fragmentos dessas muralhas, nove torres, duas portas e seu Castelo Maior, que sofreu diversas modificações no século XIX.

Apesar de nossa limitada experiência, vislumbramos as reminiscências da cidade pertencente à taifa de Saragoça, em que o Cid histórico repousara após a emblemática batalha de Pinar de Tévar. Havendo sofrido uma queda de cavalo, foi nesta batalha contra o conde de Barcelona Berenguer Ramón II e seu então aliado Al Hayib, rei da taifa de Lérida que, apesar de grande desvantagem, Cid conseguiu alcançar a vitória. Dias depois, ainda em Daroca, Cid e o derrotado Berenguer firmaram acordo passando para o vencedor o protetorado e os consequentes tributos das taifas de Al Hayib. No Cantar, após a conquista de Alcocer, o poeta apenas menciona:

Tributou primeiro a Daroca (v. 866)

Arcos de Jalón (1545 habitantes, INE 2024) – Terra de ocupação celtíbera, romana, visigótica, islâmica e cristã. Seu castelo, datado do século XIV, foi erigido sobre uma fortificação islâmica anterior, com uma torre se eleva a 16m, e muros que ostentam 2m de espessura.

Monreal de Ariza (173 habitantes, INE 2024) – O castelo de Mont Regal, inaugurado no século XII por Afonso I, o Batalhador, foi construído sobre terreno irregular – como traço distintivo da engenharia islâmica medieval – por isso, tem quatro pavimentos, em cuja parte baixa é anexa sua capela, como igreja fortificada.

Ariza (1082 habitantes, INE 2024) – Cerro de argila sob as ruínas da fortificação islâmica.

Entre Ariza e Cetina o meu Cid foi acampar;
grande é o butim que obteve na região por onde vai (vv. 547-548)

Cetina (552 habitantes, INE 2024), assim como Ariza, se viu amedrontada pela incursão de Rodrigo Díaz por suas terras, havendo-lhe entregado diversos tributos. Sua fortaleza data do século XIII e é um exemplo de gesseria mudéjar.

Alhama de Aragón (925 habitantes, INE 2024), ou Al Haman (os banhos), tem um histórico lago termal a 34º de águas terapêuticas que romanos, árabes e cristãos sempre desfrutaram. Havia em Alhama um castelo islâmico, do qual nada resta, que foi substituído por uma fortaleza cristã, cuja torre é datada do século XIV. Infelizmente, o acesso à primeira e principal fonte de águas termais está sob a propriedade de um hotel privado. Como esta é uma cidade belíssima e bastante turística, como um balneário, nosso trânsito em autocaravana inviabilizou nossas tentativas de conhecê-la melhor.

Outro dia pôs-se em marcha o meu Cid, o de Vivar
e passou por Alhama, pela foz abaixo vai.
Passou por Bubierca e por Ateca, que está adiante,
e em Alcocer, o meu Cid foi pousar,
numa colina curva, maciça e grande;
próximo dali corre el Jalão, e a água não lhe podem vedar.
O Meu Cid, don Rodrigo, Alcocer pensa em ganhar (vv. 550-556)

Infelizmente não pudemos entrar nem em Bubierca (57 habitantes, INE 2024), nem tampouco em Ateca (1732 habitantes, INE 2024). A “colina curva, maciça e forte” foi identificada no que hoje é um descampado a 3 km de Ateca, conhecido como Torrecid. Este acampamento durou, segundo o Cantar, 15 semanas, enquanto empreendiam o cerco a Alcocer, hoje, despovoado. Depois de ganhar a praça, 3 mil soldados valencianos sitiam Alcocer por três semanas. Vendo-se sem água ou víveres, Cid decide empreender a batalha campal para desbaratar o cerco.

Ao meu bom Cid, em Alcocer lhe vão cercar.

Fincaram as tendas e fixaram as barracas (vv. 655-656)

Após a vitória de Alcocer até às portas de Calatayud, Cid já tem condições militares de impor sua lei – e seus tributos – às três taifas, e se preparar para a conquista da cidade sonhada.

Tributou primeiro a Daroca,
depois a Molina, que está do outro lado,
a terceira foi Teruel, que está mais adiante;
e tinha em seu poder, Cella a do Canal (vv. 866-869)

Em Calatayud entramos no tramo chamado as Três Taifas, que correspondem a de Toledo, a de Saragoça e a de Albarracín, e segue até Cella. Na mais cruenta batalha do Cantar contra os valencianos que sitiavam Alcocer, são feridos e derrotados os caudilhos mouros, o rei Fáriz e Galve, pelos golpes de Cid e de Martín Antolínez, respectivamente. Em fuga, o rei Fáriz consegue se refugiar em Terrer, mas Galve é perseguido até as portas de Calatayud:

O Campeador ia em seu encalço,
até Calatayud durou a perseguição (vv. 776-777)

No manuscrito, o rei Fáriz se refugia em Teruel, mas porque Alcocer, onde se deu a batalha (ou o ponto atribuído a esta desaparecida localização, um sítio arqueológico chamado de Moura Encantada) dista de Teruel em 151 km, e, antes, desse mesmo ponto até Terrer, apenas 4 km, em direção a Calatayud (a 10 km), fez com que os editores do Cantar atribuíssem a menção a Teruel no v. 773 como um equívoco do copista, e substituíssem Teruel por Terrer (585 habitantes, INE 2024).

Que dia tão bom para a cristiandade,
pois fugiam os mouros por toda parte!
Os homens do meu Cid vão no encalço;
o rei Fáriz, em Terrer, conseguiu entrar,
onde, porém, não acolheram Galve,
quem até Calatayud vai a toda pressa (vv. 770-775)

E assim como Galve, não fomos acolhidos em Terrer:

Diz a placa: “Cerrado por Jubilación” (Fechado por aposentadoria). Este era o único ponto que poderia estar aberto para carimbarmos os salvo-condutos, além de haver sido uma belíssima pousada temática, que queríamos conhecer. Do castelo berbere do século XI, onde se haveria refugiado o rei Fáriz e o qual submete Cid a pagar-lhe tributos, apenas poucos vestígios restam no outeiro que se destaca sobre a cidade.

Calatayud (19.850 habitantes INE 2024) foi fundada em 716 por muçulmanos, logo após a sua invasão na península ibérica em 711. Estima-se que, no século XI, sua população pudesse oscilar entre 5.000 e 10.000 habitantes. No Cantar, são os habitantes de Calatayud que, apavorados com o avance do Campeador, pedem ajuda ao rei Tamín de Valência, quem envia um exército de 3000 homens para sitiá-lo em Alcocer.

Calatayud mostrou-se-nos uma cidade movimentada, muito viva, com seu caso antigo com ruas muito estreitas. Sua arquitetura mudéjar é patrimônio da humanidade – a arte dos muçulmanos que continuaram vivendo ali após a conquista cristã em 1120 por Afonso I, o Batalhador – e está por toda parte. Sua beleza, no entanto, apenas a observamos brevemente, pois não nos foi possível dedicar à cidade o que ela merece. E esse é o melhor motivo para voltar, com suas muralhas, sua arte mudéjar em gesso, suas cinco fortificações defensivas, incluindo a Torre Mocha, que pertencera a uma delas, hoje em ruínas, entre museus, igrejas e sinagogas, Calatayud é destino exigente.

O Castelo Maior de Ayub foi erguido no século IX. É a principal das suas 5 fortalezas, e a única bem preservada. Abaixo e à direita, vê-se a Igreja da Virgem da Penha, que se ergueu sobre as ruínas de outra das fortificações de Calatayud, cujos vestígios são apenas perceptíveis.

Passamos por diversos povoados, sem muita sorte com os carimbos.

perderás Calatayud, que já não pode se livrar.
Toda a ribeira do Jalão irá mal,
assim como a de Jiloca, que está do outro lado (vv. 633-635)

O castelo de Maluenda de Jiloca (915 habitantes, INE 2024), construído no século X, é uma das poucas fortificações islâmicas que se conservam sem interferências posteriores em sua arquitetura. Seguramente Rodrigo Diaz tinha uma visão parecida ao passar pelas terras de Maluenda.

Neste percurso de final de dia, faltou-nos força para entrar em Albarracín, apesar das fortes recomendações de não preterir deste que, por muitos, é considerado o mais belo dos pueblos da Espanha. Fomos, no entanto, dormir em Teruel, com a frustração de tarefa inconclusa, mas não desistimos de Albarracín.


Ronald Costa

Doutor em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (2019) com período sanduíche na Universitat Autònoma de Barcelona. É líder do Grupo de Pesquisa Épica Românica Medieval: Tradução e Performance e membro do GT de Literatura Oral e Popular e do GT de Estudos da Tradução da Anpoll, e da Seção nacional EUA-Canadá da Société Rencesvals, na qual atua como revisor do boletim anual para produções acadêmicas na área de Épica Românica Medieval. É docente efetivo da carreira EBTT no Instituto Federal do Paraná, Campus Astorga.