Dia 8 – De Albarracín até Valência


Teruel (36.713 habitantes, INE 2024), no século XI, deveria ser apenas um posto avançado, pois veio a se tornar vila apenas no século seguinte com Afonso II. Cidade belíssima, como Patrimônio da Humanidade, é de grande interesse artístico e arquitetônico com suas torres, arcos e portas mudéjar. Quando ali amanhecemos, no entanto, tínhamos o propósito de voltar a Albarracín. Desse modo, passamos pela segunda vez – e em sentido contrário à primeira – pela estonteante serra de Albarracín.



Albarracín (1002 habitantes, INE 2024) foi vila romana (Lobetum), cidade visigótica (Santa María de Oriente) e, nos tempos do Cid, se tornou taifa bérbere, cujo topônimo é derivado de Ibn Razín (filho de Razín). A cidade é declarada Monumento Nacional, em vias de se tornar Patrimônio da Humanidade – e nada mais justo seria. Toda a cidade está encravada num serro de arenito, os Montes Universais, e é banhada pelo rio Guadalaviar. Suas edificações, como ápice da beleza desta cidade, seguem a paleta da montanha, com gesso avermelhado.


Catedral del Salvador de Albarracín
Claro está que para fruir tamanha beleza, requer-se muita disposição em subir suas estreitas e íngremes ruas – o que, nesse ponto, se quer imaginávamos.


No Cantar, Albarracín apenas é passagem e pouso para a comitiva do Cid e dos Infantes de Carrión com suas filhas.

Em Santa Maria de Albarracín faziam pousada (v. 2645)
Mas sua participação na vida de Rodrigo Díaz foi bem mais relevante. A taifa passa a lhe pagar tributos a partir de 1088, mas, em 1093, ao saber que o rei de Albarracín tramava com Aragão a tomada de Valência, Cid lança uma forte represália à cidade, quando é gravemente ferido com uma lança no pescoço.
Nesta época, a cidade certamente já estava amuralhada, mas a aparência que exibe hoje data do século XIV. A alcáçava demarca a Albarracín medieval; com seu castelo e sua muralha de onze torres no alto da montanha, foi, por muito tempo inexpugnável.





Depois de visita tão exigente, estávamos todos bastante cansados, mas precisávamos seguir viagem.


Seguimos por Gea de Albarracín até Cella, como as águas do Guadalaviar, canalizadas pela maior obra de engenharia romana da Península, o aqueduto escavado na pedra por cerca de 25 quilômetros, datado do século II, que ainda pode ser observado em algumas partes. Em Cella (2690 habitantes, INE 2024), Cid esperou o contingente que quisesse a ele se unir para a Conquista de Valência, com a promessa de fartas riquezas. Cella desativou o aqueduto romano no século XII, quando inaugura o que ainda hoje é o maior poço artesiano da Europa, com o perímetro de 130 metros e uma vazão de 3.500 litros por segundo, com a qual abastece sete povoados.

“ —Aquele que queira ir comigo para cercar Valência,
todos venham de bom grado, pois ninguém está obrigado,
três dias vou esperar no Canal de Cella” (vv. 1192-1194).
Viajar pela Espanha faz ter a impressão de que cada pueblo esconde muitos encantos que descobrir. Em alguns trechos, não pudemos nos dedicar a algum aspecto importante do Cantar ou da história de Rodrigo Díaz, apenas passando por cidades importantes. Mas cada pequeno pueblo que conseguíamos entrar e visitar com a devida atenção, foi sempre uma surpresa. Assim ocorreu quando vimos possível parar em Mora de Rubielos. A caminho dali, o que parece ser uma grande área de reflorestamento, são, na verdade – vimos saber depois – áreas privadas de cultivo de trufas negras, entre Mora de Rubielos e Rubielos de Mora, a que, apesar de figurar entre os Pueblos Bonitos de España, e por isso mesmo merecer a visita, não conseguimos entrar. Seguimos diretamente, pois, a Mora de Rubielos, já pelo tramo da Conquista de Valência.


Mora de Rubielos (1.568 habitantes, INE 2024), menos pretensiosa enquanto destino prioritário, pareceu-nos encantadora em todos os sentidos. Apesar de não ser das menores taxas demográficas porque passamos, a cidade exala uma tranquilidade ímpar pelas silenciosas ruas emolduradas pelas pétreas edificações.






O amplo pátio interior funcionava, no século XVI, como Lonja (mercado público), onde hoje atende a Oficina de Turismo. Outro atrativo da Casa Consistorial é a masmorra, que funcionava no mesmo local e está ainda preservada. Servia para o escárnio público, em pleno mercado, daqueles que fossem detidos.

Ainda mereceria visitar seu castelo dos Fernández de Heredia, do século XII, suas muralhas, a Igreja de Santa María, do século XV, em estilo gótico e com nave única que alcança os 19m, além das cavernas naturais, e, claro, suas trufas. Mas o dia não nos esperava e tínhamos que alcançar Valência antes do anoitecer.
Outra cidade que tínhamos muita expectativa de conhecer é Sagunto (71.377 habitantes, INE 2024), uma civitas romana. Desde os tempos do Império, erigiu-se, sobre a civilização ibérica de Arse, como um oppidum, ou seja, uma cidade amuralhada. Devido a seu domínio na região e a sua posição estratégica, em 219 a. C., o general cartaginês Aníbal Barco a teve sitiada por oito meses, sem que Roma enviasse reforços. A queda de Sagundo motivou Roma a declarar a segunda guerra púnica em 218 a. C.


No Cantar, a cidade é citada como Murviedro (muri veteris, ou, muros velhos), pois assim veio a se chamar a partir de 713, com a conquista árabe. Somente em 1239, com a conquista de Jaime I, rei de Aragão, Sagunto é rebatizada com seu topônimo romano.
Em 1088, Murviedro passa a pagar tributos ao Cid Campeador. Comente depois de tomar Valência, Cid decide entrar na fortaleza de Murviedro, o que consegue em 24/06/1098. No Cantar, esta rendição ocorre três anos antes de Cid conquistar Valência, tempo durante o qual o Campeador faz de Murviedro seu quartel general. É também dentro de Murviedro, de acordo com o Cantar, que Rodrigo resiste a um grande assédio de Valência, até decidir enfrentá-los no campo, desbaratando mais uma vez o cerco Valenciano.

Além de tudo isto, ocupou Murviedro;
e já via o meu Cid que Deus lhe ia socorrendo.
Dentro de Valência, não é pouco o medo (vv. 1095-1097)
Outra cidade importante para o Cid histórico e literário é El Puig de Santa Maria (9.367 habitantes, INE 2024), para a qual rumamos diretamente, já na costa do Mediterrâneo. Chamada pelos cristãos do século XI de Puig de Cebolla – ou simplesmente Cebolla, como no Cantar – é topônimo criado por corruptela do árabe Gubayla (colinao ou montículo). O genitivo “Santa Maria” passou a ser adotado a partir do século XIII, quando foi encontrada, na cima da colina, a imagem de Santa Maria (La Mare de Déu), então padroeira do reino de Valência, dando lugar e oportunidade à construção da primeira Igreja e, posteriormente, do Real Monasterio del Puig.





Já em 1240, Jaime I fundou ali a Igreja de Santa Maria, em estilo românico, mas tamanha foi sua importância e fluxo de peregrinos que, em 1300, a antiga construção teve de dar lugar à preservada igreja em estilo gótico e ao monastério renascentista. Da estrutura românica preservam-se apenas a base do campanário e a porta com capiteis historiados.
A edificação do monastério, ao longo da história, teve diversas funções, desde escola a presídio. Hoje, além de ser ocupado pela ordem dos mercenários, parte do edifício é destinada a atos públicos. Na sua esplanada, encontramos também um refúgio de crianças, que foi construído pelos Exército Republicano na Guerra Civil Espanhola, assim como outros equipamentos de defesa, como trincheiras e túneis, como última linha de defesa de Valência.

Em 1090 sabe-se que o Rodrigo Díaz histórico passou o natal com a família em El Puig, e que, em 1092 a sitiou, tomando posse de seu castelo em junho de 1093. A partir de então, passou a reforçar a fortificação que se tornou, por vezes, seu quartel general para saques sucessivos às hortas de Valência, a fim de enfraquecer a cidade, para o cerco que planejava.

É bem verdade que após tantos lances de escada, a vista de apenas sugestivas ruínas do que fora o castelo do Cid foi um pouco desalentador.

tomaram Cebola e quanto há adiante;
saqueavam o campo e começam a regressar (vv. 1150, 1552)
El Puig também é citada em O Cantar de Roldão (2025), como cidade de origem de um muçulmano que se enfrenta ao paladino franco:
Li quenʃ Rolł el champ ⩫ repairet
tient durendal cume vaʃʃal i fiert.
Faldrun de pui i ad par mi trenchet.
Roldão, o conde, no campo está presente,
a Durindana empunha e ataca tão valente.
Fraldalhão, de Cebola, ao meio fende (vv. 1869-1871)
Depois de franquearmos esta histórica cidade, fomos por Valência, fazer cerco em algum descampado de auto-caravana, para logo nela entrar, como senhores de nosso caminho.
