Dia 9 – Valência

Publicado por Ronald Costa em

Valência (789.744 habitantes, INE 2021), a cidade sonhada, a València del Cid. A culminação de todo o empenho esforçado de nosso herói épico. Banhada pelo Mediterrâneo e historicamente circundada por esplêndidas hortas, a Valentia Edetanorum, fundada em 138 a.C., entre os séculos IV e V tornou-se cristã e visigótica, com o enfraquecimento do Império. Tariq entrou em Valência em 718, mas foi apenas com o fim do Califado de Córdoba, em tempos do Cid, que a cidade se torna uma Taifa autônoma, atingindo seu máximo esplendor. Havendo seu porto como fator decisivo no seu desenvolvimento comercial, Valência, ainda hoje, é uma das principais cidades da Espanha e da Península Ibérica, sendo, também, uma das mais visitadas. Depois de tantos dias viajando pelo interior do país, ao nos depararmos com tal dimensão e movimento populacional e turístico, a cidade nos fez experimentar uma certa sensação angustiante.

Em Valência tínhamos combinado encontrar com Antoni Rossell, que tão gentilmente veio de Barcelona para nos mostrar alguns pontos imprescindíveis desta cidade.

Primeiro destino: A Lonja de los Mercaderes ou Lonja de la Seda (Lotja de Mercaders em valenciano). Exemplo antonomásico da arquitetura civil gótica, e símbolo da prosperidade comercial da Valência do século XV. Declarada Patrimônio da Humanidade e toda em pedra esculpida, a Lotja está situada na Plaça del Mercat. O salão das colunas (ou sala de contratação), como espaço principal da edificação, tem pé-direito de 17,4m e um total de 8 colunas e 16 pilastras helicoidais que conformam 8 naves de teto abobadado, espaço em que se faziam as transações comerciais, tendo a seda como protagonista principal até o século XVIII. O espaço já foi utilizado para diversos atos públicos e hoje está apenas aberto à visitação.

No pátio das laranjeiras, uma parada para apreciar os detalhes das gárgulas. Ao todo, do prédio dependuram-se 28 gárgulas com motivos diversos, entre a crítica social e a escatologia.

Ainda pudemos apreciar, contíguo à sala de contratação, o Consulado do Mar, onde, desde o século XIII, os cônsules de Valência deliberavam questões relativas ao comércio marítimo. Para além disso, apenas vislumbramos a torre, também contígua aos anteriores, com sua espetacular escada em espiral, pois não é aberta à visitação.

Próximo destino: Mercat Central.

Situado ao lado la Lotja, onde desde meados do século XIX já havia um mercado a céu aberto, o Mercat tem arquitetura moderna e tardo-gótica, e começou a ser construído em 1914. Com mais de duas centenas de estabelecimentos comerciais no seu interior, chama a atenção sua abóboda central, coroada pela veleta.

E, finalmente, nosso destino prioritário: a Catedral de Valência e a Torre Micalet.

Havendo estabelecido sua base militar em El Puig, Cid sitiou Valência em julho de 1093 – intento no qual fracassara Afonso VI no ano anterior, mesmo contanto com forte base naval de que nunca dispôs o Campeador. O cronista e poeta valenciano Ibn ‘Alqama, contemporâneo dos fatos, narrou as atrocidades com que Rodrigo Díaz saqueava o subúrbio da cidade e com que sistematicamente devastava suas hortas, de modo que a fome começou a ser sentida intra-muros no inverno daquele mesmo ano. Em maio de 1094, Ibn Jahhaf começou a tratar com Cid os termos de rendição e, em 15/06/1094, Mio Cid Rodrigo Díaz de Vivar, el Campeador entrou pelas portas da cidade, como conquistador e Príncipe independente.

Do século XI nada resta, mas não é demais imaginar que as remanescentes Torres de Quart, como entrada principal de Valência desde o século XV, unidas a sua antiga muralha defensiva, ocupem o lugar de outro, então românico portal, por onde entrou triunfalmente o Cid histórico.

Torres de Quart vistas do alto da torre Micalet.

Grande é a alegria que por ali predomina,
quando o meu Cid ganhou Valência e à cidade se encaminha.
São feitos cavaleiros os que a pé iam;
o ouro e a prata, quem tanto contar poderia?
Todos, quanto ali estão, ricos se faziam (vv. 1211-1215)

Já na época romana, onde hoje ergue-se a Catedral de Santa María (La Seu, em valenciano), havia um templo provavelmente dedicado a Júpter, sobre o qual se construiu a catedral visigótica que se tornou Mesquita Maior da Taifa de Valência. Em 1096, Rodrigo Díaz consagrou a Mesquita como Catedral ao bispo Jerónimo de Perigord, mediante um diploma ainda preservado com sua assinatura.

A este dom Jerônimo já o nomearam bispo,
lhe foi dada Valência, lugar onde poderá ser muito rico.
Oh, Deus, que alegre estava todo o cristianismo,
pois em terras valencianas já havia um senhor bispo!

Não se sabe onde residiu Cid após a conquista de Valência, se no palácio de Al-Qádir, que deveria situar-se próximo à porta principal da cidade, ou se no alcaçar, onde hoje ergue-se o Almudín, o antigo armazém da cidade, agora dedicado a exposições temporais.

Alegre está o Campeador com quantos ali há,
quando içam sua insígnia principal sobre o alcaçar.

Mas é na torre do alcaçar que Cid sobre com Jimena e suas filhas para que elas contemplassem a cidade por ele ganhada. Embora não tenhamos nenhuma indicação histórica deste ato simbólico, nem tampouco vestígios do alcaçar, a possível experiência de Cid com sua família apenas se pode emular do alto da Torre del Micalet, o campanário da Catedral.

Dirigiu-se o meu Cid com elas ao alcaçar,
ali subiu até o mais alto lugar.
Olhos airosos fitam por toda parte,
contemplam Valência, como se prolonga a cidade,
e, do outro lado, têm à vista o mar.

A Torre del Micalet, concluída no século XIV, tem estilo gótico valenciano, em formato octogonal, com 51m de altura e 207 degraus em espiral. A subida é exigente, mas emular a emoção do Campeador acompanhado de sua família não tem preço.

Até este ponto, foram mais de 1500 km em 9 dias de viagem e 30 pueblos visitados. Depois de tantas realizações, precisávamos de uma boa restauração.

Já descansava o meu Cid com toda a sua mesnada (v. 1221)

Fomos comer com Antoni Rossell no tradicional restaurante La Pepica, que iniciou suas atividades em 1898 por iniciativa de um matrimônio. Sua cozinha totalmente aberta logo na entrada do estabelecimento tem os arroces e a paella como protagonistas absolutos de sua carta. Com a excelente comida e o charme especial do salão decorado no mais autêntico estilo valenciano, era o restaurante preferido de Hernest Hemingway em Valência – cidade para qual sempre retornava – além de uma coleção de outros frequentadores ilustres, inclusive a família real espanhola; fato que os retratos na parede não nos deixam desaperceber.

Foi um almoço nada menos do que explêndido.


Ronald Costa

Doutor em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (2019) com período sanduíche na Universitat Autònoma de Barcelona. É líder do Grupo de Pesquisa Épica Românica Medieval: Tradução e Performance e membro do GT de Literatura Oral e Popular e do GT de Estudos da Tradução da Anpoll, e da Seção nacional EUA-Canadá da Société Rencesvals, na qual atua como revisor do boletim anual para produções acadêmicas na área de Épica Românica Medieval. É docente efetivo da carreira EBTT no Instituto Federal do Paraná, Campus Astorga.